A complexidade das relações fono-ortográficas: alfabetização, ortografização e os campos de atuação da BNCC
A importância da compreensão dos processos de alfabetização e ortografização para a escolha de estratégias didáticas alinhadas aos campos de atuação da BNCC
Neste artigo, abordamos a complexidade das relações fono-ortográficas do português e a importância da sua compreensão para a escolha de estratégias didáticas nas aulas da Língua Portuguesa
A alfabetização no português do Brasil envolve um grande desafio: compreender as relações entre os sons da fala (fonemas) e as letras da escrita (grafemas). Essas relações, chamadas de relações fono-ortográficas, são muito mais complexas do que em algumas outras línguas que possuem um sistema de correspondência quase biunívoco — isto é, uma letra para um som, sem variações.
Por que o português é tão complexo?
No português do Brasil, há poucos casos em que uma letra representa apenas um som. O que ocorre, na maioria das vezes, é que vários grafemas podem representar o mesmo som. Por exemplo, o som /s/ pode ser representado pelas letras s, c, ç, x, ss, sc, z, xc, entre outras. Além disso, uma mesma letra pode ter sons diferentes dependendo do contexto, como o "s", que pode soar como /s/ ou /z/, ou o "x", que pode ter múltiplas pronúncias: /s/, /z/, /∫/ e /ks/. E ainda há letras que muitas vezes não produzem som algum, como o "h".
Das 26 letras do alfabeto, apenas sete possuem uma relação regular e direta entre fonema e grafema — ou seja, quase sempre representam o mesmo som. São elas: p, b, t, d, f, v e k, que correspondem a consoantes bilabiais, linguodentais e labiodentais surdas e sonoras.
Regularidades contextuais e morfológicas
Além dessas relações diretas, existem outras regularidades que dependem do contexto fonológico da palavra ou do seu aspecto morfológico e gramatical. As regularidades contextuais são aquelas em que a escrita varia conforme o contexto, como em R/RR, S/SS, ou G/A,O,U e GU/E,I, por exemplo. Já as regularidades morfo-gramaticais envolvem regras ligadas à estrutura das palavras, como sufixos, flexões verbais e categorias gramaticais. Para dominar essas regras, o aluno precisa ter algum conhecimento prévio de gramática e construir essas aprendizagens ao longo do tempo.
A irregularidade e o papel da memorização
No entanto, a maior parte das relações fono-ortográficas no português é irregular, resultado da evolução histórica da língua e da sua ortografia. Essas irregularidades não seguem regras fixas e, por isso, só podem ser aprendidas e aplicadas por meio da memorização constante das palavras. Por isso, o processo de construção dessas relações ortográficas pode levar anos (ou a vida toda!).
A importância de entender a estrutura silábica
Outro ponto importante é a forma como a estrutura da sílaba é apresentada na alfabetização. Muitas vezes, as sílabas são ensinadas inicialmente apenas em sua forma simples (consoante + vogal, o padrão CV), e sílabas mais complexas aparecem tardiamente. As sílabas, no entanto, devem ser compreendidas como grupos de fonemas organizados em torno de um núcleo vocálico e pode conter diferentes combinações consonantais e vocálicas.
Competências essenciais na alfabetização
Assim, a alfabetização envolve um conjunto de competências, que incluem:
distinguir a escrita de outras formas gráficas e símbolos;
conhecer e dominar as convenções gráficas (maiúsculas, minúsculas, cursiva, script);
compreender o sistema alfabético e suas relações fonema-grafema;
decodificar palavras e textos escritos;
desenvolver a leitura fluente e a percepção global das palavras.
É preciso, portanto, complementar o processo básico de construção do conhecimento das relações fonografêmicas (ou grafofonêmicas) em uma língua, o qual pode acontecer em dois anos. O processo de alfabetização precisa, todavia, ser complementado por outro bem mais longo, conhecido como ortografização, para o conhecimento pleno do sistema ortográfico do português brasileiro.
É importante lembrar que o processo de ortografização, em sua totalidade, pode se estender por um período maior do que os próprios anos iniciais do Ensino Fundamental, na medida em que a consolidação do uso correto da escrita é gradual e demanda tempo e prática constante.
Nos primeiros anos, os processos de alfabetização e ortografização impactam diretamente os gêneros textuais trabalhados em sala de aula. Embora a leitura e a produção sejam frequentemente compartilhadas com o professor e os colegas, os gêneros explorados nesse momento tendem a ser mais simples e próximos do universo cotidiano dos alunos. São exemplos comuns listas (como listas de chamada, ingredientes ou compras), bilhetes, convites, fotolegendas, manchetes, lides e regras da turma. Esses textos favorecem o foco na grafia e vão se tornando mais complexos à medida que o estudante avança nos anos iniciais, apropriando-se de outros campos de atuação
“Os campos de atuação considerados em cada segmento já contemplam um movimento de progressão que parte das práticas mais cotidianas em que a circulação de gêneros orais e menos institucionalizados é maior (Campo da vida cotidiana), em direção a práticas e gêneros mais institucionalizados, com predomínio da escrita e do oral público (demais campos). A seleção de gêneros, portadores e exemplares textuais propostos também organizam a progressão, como será detalhado mais adiante.” (BNCC - Língua Portuguesa)
Dessa forma, ganha relevância o contato com gêneros familiares ao cotidiano dos alunos, como cantigas de roda, receitas e regras de jogo, que estimulam o aprendizado de forma contextualizada e significativa. Paralelamente, o desenvolvimento dos conhecimentos linguísticos e a análise multissemiótica da escrita avançam gradativamente, contemplando aspectos como pontuação, acentuação e a introdução das classes morfológicas das palavras, a partir do 3º ano.
Conclusão
Entender as complexidades das relações fono-ortográficas do português é fundamental para uma alfabetização eficaz e para o desenvolvimento de práticas pedagógicas que respeitem as dificuldades reais dos aprendizes. O conhecimento sobre as regularidades e irregularidades do nosso sistema de escrita permite que professores e educadores possam orientar melhor seus alunos no caminho da leitura e da escrita.